quarta-feira, 16 de junho de 2010

[STBSEB:4292] A liberdade de fazer mal a si mesmo

Encaminho...

A liberdade de fazer mal a si mesmo
Lei antifumo e a Filosofia: onde está e qual é o limite da liberdade
de fazer mal a si mesmo?

Renato Janine Ribeiro


Com a lei antifumo, o debate filosófico se instala: qual é o direito
das pessoas, sabendo sobre os males do cigarro, de querer fumar mesmo
assim? Qual o limite de uma pessoa que não ultrapassa o direito do
outro?


Tem o poder público direito a limitar a liberdade das pessoas de
fumar, beber, em suma, de se fazerem mal, mesmo que elas queiram
fumar, beber, fazer-se mal? Essa discussão reaparece sempre que uma
medida legislativa coíbe o fumo ou a bebida. Vale a pena tentar
esclarecer o que está em jogo.

Comecemos com uma distinção básica. Ninguém em sã consciência negará o
direito – e mesmo o dever – do poder público a proibir o que faça mal
a uma outra pessoa. A questão filosófica é se ele pode impedir que eu
faça mal a mim mesmo. Essa distinção é fundamental porque, no debate
sobre a lei seca (federal) e a lei antifumo (paulista), os dois
assuntos foram constantemente confundidos.

Assim, se a lei proíbe uma pessoa com álcool no sangue de guiar, não a
está impedindo de fazer mal a si mesma. Está dificultando que faça mal
a outras pessoas. Essa lei, portanto, não entra no caso que estamos
discutindo. Ninguém perdeu o direito de beber "até cair", como dizia a
canção de carnaval. O que não vale é guiar bêbado porque, assim, se
pode ferir ou matar alguém.

Também a proibição de fumar em lugares públicos não é uma proibição de
fazer mal a si mesmo. Ela impede que os não fumantes sejam
convertidos, contra a vontade, em fumantes passivos. Continuo podendo
escolher fumar, isto é, ser fumante ativo. Mas devo respeitar o
direito dos outros a não fumar, ativa ou passivamente. Como a Ciência
prova que a saúde piora já por aspirar a fumaça do cigarro alheio,
isso está certo: o fumante pode fumar, mas não deve causar doenças em
outras pessoas.

O DEBATE FILOSÓFICO. Onde está a proibição de fazer mal a si mesmo?
Ela está numa justificativa que apareceu na lei proibindo a propaganda
do fumo na televisão. Foi uma iniciativa do então Ministro da Saúde,
José Serra, atacada porque impediria as pessoas de, livremente,
escolherem se querem fumar – e, se quiserem, por que não poderiam
causar mal a si próprias? Aqui, estamos no debate filosófico.

A questão é se eu, ciente de que uma droga (cigarro, bebida ou
qualquer outra) me faz mal, posso escolher usá-la e abusá-la, desde
que com isso não prejudique ninguém mais? Essa questão exige um
comentário e uma pergunta.

O COMENTÁRIO: é difícil distinguir exatamente o que é fazer mal a si e
ao outro. Fumantes e alcoólicos costumam ter mais doenças do que não
fumantes e abstêmios. Por isso, eles usam a rede pública de saúde ou a
de seu convênio mais que os outros. Mas pagam o mesmo que sua faixa
etária. Suas despesas são maiores, e parte delas é financiada pelos
outros. Esse é um assunto delicado, que talvez leve, no futuro, a
calcular seguros de saúde pelo perfil do segurado – como já sucede com
os carros, dado que rapazes de 18 anos pagam mais que senhoras de 40
anos, respectivamente a faixa que causa mais acidentes e a que causa
menos. Esse é um exemplo da complexidade do assunto.


Já a pergunta filosófica sobre a liberdade é: será a pessoa realmente
livre para escolher? As fábricas foram acusadas de incluir, no tabaco,
elementos químicos que induzem à dependência. Nesse caso, é óbvio que
o adicto não é um sujeito abstratamente livre, pois terá sido drogado.

No fundo, a questão da liberdade de fazer-se mal coloca frente a
frente dois personagens: por um lado, um sujeito humano livre, que
escolhe, a despeito das pressões, o que prefere; por outro, um
conjunto de pressões – econômicas, sociais e até químicas – que
influenciam sua ação, privando-o parcial ou totalmente da liberdade.
Toda a questão está no equilíbrio entre um fator e outro.

Se der peso demais à liberdade individual, desprezarei os
condicionamentos sociais. Se valorizar muito estes, a liberdade
pessoal será um mito. Mas esses são dois extremos. Na prática, temos
que ver caso a caso. Vejamos uns exemplos.

EXEMPLOS. O cigarro tem elementos químicos que induzem à dependência.
Além disso, a propaganda já o associou à juventude, ao glamour e,
espantosamente, até à saúde. Sabemos que é difícil parar de fumar. Daí
que seja justo o poder público proibir a propaganda, impedir o acesso
dos adolescentes ao fumo, questionar os elementos químicos que incitem
à dependência e estudar o custo adicional para as redes de saúde. Mas,
se tudo isso for acertado, quem quiser fumar e com isso não causar mal
a outrem, que o faça.

Vamos complicar a questão da liberdade. Contarei uma história pessoal.
Lecionei numa universidade norteamericana. Havia o mito de que o
professor homem deveria evitar ficar sozinho numa sala com uma aluna,
porque depois ela poderia acusá-lo de assédio sexual. Mas, quando
recebi o manual de procedimentos da universidade, vi que relações
românticas entre professores, funcionários e alunos não preocupavam a
instituição. O manual dedicava maior espaço a casos em que um rapaz
saía com uma moça, talvez disposto a uma aproximação romântica,
entretanto transavam depois de se embriagarem. Às vezes, a moça se
arrependia e reclamava que não escolheu livremente. As consequências
podem ser ruins, para ela, se ficar com uma má lembrança – ou para
ele, que eventualmente pode até ser expulso da universidade.

O que há em comum nos dois exemplos? Eu apenas quis mostrar que o
formato da questão é igual. Posso dizer que tabagistas tanto quanto
jovens fazendo amor escolheram livremente seus atos – ou que foram
manipulados pela propaganda, o meio social, a euforia do momento...
Ora, se o modelo da questão é análogo, é sinal de que não há resposta
pronta para a pergunta. Depende de cada caso. Em certas ocasiões, é
preciso proteger as pessoas, que só aparentemente são livres para
escolher. Em outras, fazer isso é uma intromissão absurda na liberdade
de cada um. Como estabelecer a fronteira?

Ou fast food. Sabe-se que faz mal. Deve ser proibida? Devem ser
impedidas suas lojas de aliciar crianças com brindes? Deve-se permitir
a atividade, mas retirando o glamour adicional e cativante? Tolerar
sua ação incontrolada contra pessoas vulneráveis é insensato. Mas
proibir as pessoas de escolher, a pretexto de não saber o que fazem,
pode levar a um policiamento intolerável de nossas vidas. Em suma, o
que podemos fazer aqui é apresentar argumentos. A escolha entre eles é
sempre difícil. Mas quem disse que a Ética é coisa fácil?

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